terça-feira, 13 de setembro de 2011

Sem prazer, sem marido, sem filho.

Por que é difícil acabar com o crime da mutilação genital?

Vários dias depois, a menina de 9 anos continua com as pernas amarradas para cicatrizar
Há três tipos de corte genital feitos para a circuncisão feminina. Na clitoridectomia, parte do clitóris é removida. Na excisão ou extirpação, são retirados o clitóris e os pequenos lábios da vagina. O tipo mais cruel é a infibulação: após a retirada do clitóris e dos pequenos lábios, os grandes lábios da vagina são cortados ou raspados. Para a cicatrização, os dois lados da área lesionada são mantidos grudados por meio de pontos cirúrgicos ou amarrando-se as pernas da mulher. A cicatriz formada cobre os lábios e a maior parte do orifício vaginal, deixando apenas uma pequena abertura para a passagem da urina e do sangue menstrual. Essa prática produz um estreitamento da vagina que torna a penetração extremamente dolorosa, quando não impossível. A infibulação também interfere no prazer sexual do homem por causa da dificuldade de penetração, e pode afetar a capacidade reprodutiva da mulher. Um estudo feito no Sudão mostrou que mulheres submetidas à infibulação têm duas vezes mais riscos de apresentar problemas de fertilidade. O mesmo estudo apontou uma taxa de divórcios duas vezes maior entre essas mulheres. O marido pede a separação movido por problemas tanto no relacionamento sexual quanto na capacidade de a mulher procriar. A triste ironia é que uma das justificativas para a prática é de que ela favorece a união conjugal e garante a fertilidade. Embora não existam dados precisos, acredita-se que 15% do total de circuncisões femininas sejam feitas por infibulação. Em países como a Somália e o Sudão, porém, cerca de 85% das mutilações genitais realizam-se por esse método.
Foi o que a enfermeira brasileira Kelly Cavalete Cardoso, 29 anos, presenciou em 2007, quando passou seis meses na Somália trabalhando para a organização Médicos Sem Fronteiras. “Na região onde atuei, todas as meninas são submetidas à circuncisão tipo III, que é a infibulação. Normalmente, ocorre entre os 5 e os 7 anos e é realizada em casa pela avó. Também existem mulheres especializadas em executar esse tipo de mutilação dentro da comunidade, e algumas famílias preferem recorrer a essas senhoras.” A enfermeira conta que os cortes eram realizados com tesoura ou faca e as suturas com agulhas de costura. “Em alguns casos, as vaginas se fecham de tal maneira que, após o casamento, o marido acaba abrindo o orifício vaginal com algum instrumento cortante para poder manter relações sexuais.” São histórias de horror que, para a população local, se repetem como mais um fato “natural” da vida, segundo os relatos ouvidos por Kelly. “Dificilmente se questiona ou se comenta sobre a possibilidade de não fazer (a circuncisão). É algo realizado há muito tempo e as pessoas nem sequer compreendem o porquê, simplesmente o fazem. Há descontentamento por parte de algumas jovens, mas está longe de ser uma revolta”, avalia a enfermeira. Daí a importância de vozes como a da ex-modelo somali Waris Dirie, uma vítima que transformou a própria dor em causa. Aos 5 anos, Waris foi submetida à mutilação genital, supostamente para garantir um futuro casamento. Aos 13, prometida a um homem muito mais velho, fugiu para a Europa, onde foi descoberta por um olheiro e tornou-se modelo. A fama não apagou as marcas do passado: tornou-se embaixadora das Nações Unidas pelo fim do corte genital e escreveu um livro sobre a própria história, Flor do Deserto (Ed. Hedra), que acaba de virar filme (leia entrevista na próxima página). Mas essa não é uma causa apenas dela. É preciso que seja uma luta de todas as mulheres.

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