sábado, 10 de abril de 2010

Ilustre Senador Demóstenes Torres, Quem lhe escreve é Cazemiro, um Nagô atrevido.

Ilustre Senador Demóstenes Torres, Quem lhe escreve é Cazemiro, um
Nagô atrevido. Faço-o porque li que o senhor, um senador, doutor em
leis, sustenta que a escravidão brasileira foi uma instituição
africana. Referindo-se aos quatro milhões de negros trazidos para o
Brasil, vosmicê disse o seguinte: "Lamentavelmente, não deveriam ter
chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."
Vou lhe contar o meu caso. Eu cheguei ao Rio de Janeiro em julho de
1821, a bordo da escuna emília, junto com outros 354 africanos. O
barco era português, e o capitão, também. Fingia levar fumo para o
Congo, mas foi buscar negros na Nigéria e, na volta, acabou capturado
pela Marinha inglesa. Desde 1815, um tratado assinado por Portugal e a
Grã Bretanha proibia o tráfico de escravos pela linha do Equador.
Quando a Emília atracou no Rio, fomos identificados peias marcas dos
ferros. A minha, no peito, parecia um arabesco. Viramos "africanos
livres". Livres? Não, o negro confiscado a um traficante era
privatizado e concedido a um senhor, a quem deveria servir por 14
anos. O Félix Africano, resgatado em 1835, penou 27 anos. Doutor
Demóstenes, essa lei era brasileira.
A turma da Emília trabalhou na iluminação das ruas e no Passeio
Público. Algumas mulheres tornaram-se criadas. A gente se virou,
senador. Havia senhores que compravam negros mortos, trocavam nossas
identidades e não nos liberavam. As marcas a ferro nos ajudaram.
Alguns de nós conseguiram juntar dinheiro. Como estávamos sob a
supervisão dos juízes ingleses, em 1836 compramos lugar num barco. Dos
354 que chegaram, talvez 60 retornaram à África.
Como doutor em leis, vosmicê sabe que o Brasil comprometeu-se a acabar
com todo o tráfico em 1830. Entre 1831 e 1856 chegaram 760 mil negros,
os confiscados devem ter sido 11 mil, ou 1,5%. Aquela propriedade da
Marinha, na Marambaia, onde às vezes o presidente brasileiro descansa,
era um viveiro de escravos contrabandeados.
Não apenas a escravidão do império era uma instituição brasileira como
assentava-se no ilícito, contrabando.
Outro dia eu encontrei o Mahomah Baquaqua, mais conhecido Estados
Unidos do que no Brasil. Ele foi capturado no Benim, lá 1840, vendido
a um padeiro em e revendido no Rio ao do navio "Lembrança". Em 1847 o
barco fez uma viagem ao porto de Nova York e lá o Baquaqua fugiu. Teve
a proteção dos abolicionistas, razoável cobertura jornalística,
estudou e escreveu um livro sua história (inédito em português,
imagine). Fazia tempo eu queria perguntar ao Baquaqua por que, em suas
memórias, não contou que, de acordo com as leis brasileiras, o seu
cativeiro era Ele diz que esqueceu, mas se tivesse lembrado, não faria
menor diferença.
Senador Demóstenes, a escravidão foi brasileira, assim como é
brasileira uma certa dificuldade para lidar com os negros livres. Eu
que o diga.
Axé
Cazemiro
o P.S. Há uma referência ao caso da Emília no artigo "A proibição do
tráfico atlântico e a manutenção da escravidão", da professora Beatriz
Gallotti Mamigonian, publicado re centemente na coletânea de ensaios
"O Brasil Imperial". Que Xangô apresse a publicação de seu livro sobre
os "africanos livres" no Brasil.
ELIO GASPARI é jomalista.

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