A titulação das terras quilombolas é um processo longo por natureza. A demora é agravada por fatores diversos, sendo que os principais são as dificuldades estruturais do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a resistência dos que se sentem prejudicados, que buscam na Justiça os meios de postergar ou impedir a desapropriação das terras para entregá-las aos seus ocupantes mais antigos.
Para que uma região seja reconhecida como terra quilombola, é preciso que a própria comunidade se autodenomine como tal. A convenção 169 da OIT, que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário, determina que o reconhecimento destes povos se faça pela autodefinição, ou seja, é a própria comunidade que tem que se entender como quilombola e partir em busca do reconhecimento oficial. Esta chancela é oferecida por uma certidão emitida pela Fundação Palmares, órgão ligado ao Ministério da Cultura que trata da preservação e fomento da cultura afro-brasileira. Este documento é o início do processo e os fazendeiros e empresários interessados no território contestam sua validade, já que, na opinião destes grupos, não pode ter valor legal algo que se baseie na autodefinição. Mas, como este procedimento atende à legislação específica, até hoje não foi encontrada nenhuma brecha legal que levasse ao cancelamento de uma certidão em função de ter sido contestada por alguém interessado em terras ocupadas pelos quilombolas.
Além de servirem para iniciar o processo de reconhecimento das terras, a certidão emitida pela Fundação Palmares tem também outra vantagem. Dando visibilidade àquela comunidade, é possível desenvolver e aplicar políticas públicas específicas. Por exemplo, foi constatado que a alimentação dos quilombolas não é adequada, já que, ilhados pelos fazendeiros e grandes empresas de exploração florestal, não podem coletar ou cultivar os víveres necessários à sua sobrevivência. Nas comunidades que foram reconhecidas como remanescentes de quilombos, está sendo implantado um programa de segurança alimentar, através da merenda escolar, que está contribuindo para a melhoria das condições de saúde das comunidades, principalmente as crianças e jovens.
Tempo, tempo, tempo
Mas à Fundação Palmares cabe somente a emissão da certidão, que serve para iniciar o processo de reivindicação das terras. É no Incra que é feito o trabalho de identificar e delimitar o território, avaliar o valor de mercado das terras e das benfeitorias construídas pelos proprietários e elaborar o RTDI – Relatório Técnico de Identificação e Delimitação. Com base neste relatório é calculado o valor da indenização para que a área seja desapropriada e entregue aos quilombolas, com título de propriedade coletivo e cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade para garantir que as terras sempre serão destinadas ao uso comum de toda a comunidade e seus descendentes. Caso a atividade exercida ou alguma modificação na propriedade tenha provocado danos ambientais, o valor da indenização para o proprietário é reduzido, considerando o custo de recuperação da área afetada. Esta avaliação é feita pelo Incra, com base em instruções normativas.
O processo na Fundação Palmares, por sua própria natureza, é relativamente rápido. Já no Incra o prazo para elaboração de todos os laudos, relatórios e pareceres a respeito do território reivindicado pelos quilombolas é de dois anos. Mas o que poderia ser mais ágil e célere acaba consumindo todo este tempo, em função das profundas dificuldades estruturais por que passa o órgão. Restrito durante muitos anos a um papel burocrático de legalização de terras, em governos desinteressados por promover a desconcentração da propriedade rural, o órgão não captou recursos materiais e, principalmente, humanos que permitissem o bom andamento do trabalho. Segundo o antropólogo Roberto Almeida, da Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas do órgão, o déficit de funcionários chega perto de dez mil. O concurso para preenchimento de vagas em dois cargos, que deve ser aberto até o fim do primeiro semestre, prevê a abertura de apenas 550 posições. “Hoje, aproximadamente 40% dos servidores estão em fase de pré-aposentadoria”, acrescenta.
Com esta deficiência, o andamento dos trabalhos é lento. “Isso se deve à baixa capacidade do Incra para atender à demanda. No Espírito Santo, por exemplo, não há antropólogo. Em alguns estados, o órgão e o movimento quilombola trabalham juntos para definir quais são as prioridades, quais comunidades precisam ser atendidas com mais urgência”, informa Roberto Almeida. O antropólogo explica, ainda, que, quando esta parceria não acontece, algumas vezes é a Justiça que determina qual comunidade vai passar primeiro pelo processo de elaboração do RTDI e avaliação do valor da indenização. “A política para as comunidades remanescentes de quilombos é nova, diferente da dos indígenas, que já é mais antiga, e há dificuldades. Seria necessário quase que outro Incra só para a área dos quilombolas. A titulação de terras foi criada em 1995, mas só começou a funcionar mesmo aqui em 2003”, explica Almeida.
Interesses e valores
Mas não é só dentro do Incra, com suas deficiências, que o processo se arrasta. É na Justiça que a briga se prolonga. Se o proprietário da terra pretendida pelos quilombolas tiver todos os documentos legais – emitidos pelo próprio Incra – a indenização será referente ao valor da propriedade e das benfeitorias feitas. Quando a documentação não existe ou é falsa, são indenizadas somente as benfeitorias. Como, em função do histórico de ocupação da terra no Brasil, poucas propriedades rurais são totalmente legalizadas, os fazendeiros e empresários usam de todos os artifícios processuais possíveis para retardar a desapropriação. “Quando o interesse econômico é muito poderoso, o processo não anda ou anda bem mais devagar. Eles fazem pressão política ou através do Judiciário. O grande poderio político entrava e dificulta o processo de reconhecimento do direito pelas comunidades”, descreve Roberto Almeida. A prova disso é a reação que já está ocorrendo no Espírito Santo à publicação do decreto de desapropriação das terras pertencentes à comunidade quilombola de Retiro, no município de Santa Leopoldina. Parlamentares e até setores da Igreja estão articulados e tentam anular o decreto, alegando inconstitucionalidade.
A boa notícia para as comunidades remanescentes de quilombos é que a última barreira legal para a desapropriação das terras quilombolas caiu em 2009. Agora, o processo deve ser acelerado. “As comunidades que já têm RDTI pronto e publicado devem conquistar o título mais rápido”, espera Roberto Almeida. Mas para os grupos que ainda não têm relatório pronto, a espera continua. “O Incra tem uma meta de entregar 700 relatórios até 2011, mas não vamos conseguir cumpri-la. Talvez possamos passar de 100, e olhe lá”, calcula o antropólogo.
História e contexto
quilombos constituíram uma importante forma de resistência dos negros trazidos da África contra a escravidão. Fugindo da opressão, dos trabalhos forçados, das condições sub-humanas e da violência, escravos se embrenhavam nas matas e fundavam aldeias onde passavam a viver escondidos. Alguns destes grupamentos eram grandes, sendo o maior deles o Quilombo de Palmares, que chegou a ter uma população estimada de 20 mil habitantes. Outros eram compostos de poucas famílias, algumas formadas pelo casamento entre as mulheres e homens que lá se refugiavam.
Os quilombos maiores foram combatidos, mas muitos dos pequenos ficaram esquecidos. Ao longo dos séculos, muitos quilombolas viveram isolados, outros tinham contatos esporádicos com a população não negra da região. E, embrenhados na floresta, ficaram invisíveis para o poder público.
O problema começou quando fazendeiros e grandes empresas começaram a se espalhar pelas regiões onde ficavam estes quilombos, principalmente a partir dos anos 70, quando os desmatamentos revelaram o que estava escondido na floresta. A construção de barragens de usinas hidrelétricas, também intensificada na época, foi outro fator que contribuiu para revelar estes grupamentos. Identificados pelo Estado como “comunidades negras rurais” até a Constituição de 1998, os remanescentes de quilombos não tinham nenhum mecanismo de proteção contra a ação dos endinheirados do campo, nem tinham força política para contestar as grandes obras da política desenvolvimentista.
Legislação*
Os procedimentos para a concessão da certidão pela Fundação Palmares às comunidades quilombolas estão definidos na Portaria 98 emitida pelo órgão, que regulamenta as ações a serem desenvolvidas, segundo determinação do Decreto 4887/03. Esta legislação específica vem atender a uma exigência da Constituição de 88, que, no artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, diz que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A Convenção 169 da OIT, que foi ratificada pelo Decreto Legislativo nº 143, de junho de 2002, é a legislação geral que define o tratamento a ser dado aos povos tradicionais.
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