Ao Carlos Heitor Cony, por uma inspiração involuntária.
Somos
um país de torcedores. Como em folhetins de todas as épocas, existe uma
tendência nacional de reduzir tudo a heróis e vilões. Para a turma da
minha geração, a mamadeira já vinha acompanhada de boas doses
de Ted Boy Marino contra Verdugo (no inesquecível Telecatch Montilla),
de Mickey contra João Bafo de Onça, de Popeye contra Brutus, de Super
Homem contra Lex Luthor. Esses polos deixam de ser inocentes
manifestações de paixão quando se transportam para o mundo puro e duro.
Utilizar a linguagem dos quadrinhos para se entender a sociedade leva a
aberrações como, por exemplo, chamar o ministro do STF, Ricardo
Lewandowski, de “vendido” e “traidor”, e o também ministro Joaquim
Barbosa, de “herói nacional”. Ou vice-versa, dependendo do gosto do
freguês. A simplificação do Fla-Flu nunca foi boa conselheira.
O
julgamento do mensalão segue, em grandes linhas, o padrão das torcidas.
Há um clima de quase histeria em certos momentos. O que me inquieta é a
base movediça que informa os torcedores. Quantos deles têm acesso aos
autos dos processos ? Quantos, entre eles, têm competência jurídica para
avaliar pareceres e sentenças ? Quantos entendem o idioma dos
Meritíssimos ? Isso vale, claro, para todos os “times” envolvidos e nos
remete a uma questão essencial: uma vez que depende de interpretações,
não há neutralidade na Justiça. Aliás, não há neutralidade na vida. Não
acredito na ingenuidade e “espírito público” dos ilustres petistas que
indicaram oito dos onze ministros do STF (e também os dois procuradores
do mensalão, o que fez a denúncia inicial e o atual). Desconfio
seriamente que imaginavam criar uma boa blindagem no Judiciário, uma
sublegenda legal de confiança. Não à toa, antes do julgamento, Jilmar
Tatto, líder do PT na Câmara dos Deputados, declarou, com toda a
arrogância a que tinha direito: “Os réus petistas vão ser todos
absolvidos. Vocês vão ver. Os ministros do STF são corajosos”. Corajosos
? Hoje, são rotulados de “farsantes” por esses torcedores. O time
deles, afinal, está perdendo.
Parte
do sentimento popular com relação à malha de corrupção que está sendo
julgada vem da história de impunidade para os criminosos de colarinho
branco. Como dizem os juristas, neste país só são condenados os três Ps:
pobres, pretos e putas. Com bons advogados e legislação leniente, é
praticamente impossível que os abastados paguem por seus crimes. No
Brasil, existe uma aristocracia que se comporta com a absoluta certeza
de que está acima da lei. Além disso, há uma lamentável, mas
compreensível, péssima avaliação dos políticos em geral, não raro
comparados a bandidos. Na sua época, digamos, veemente, Lula chegou a
dizer que havia 300 picaretas no Congresso. Hoje, seu partido dissolveu
todas as fronteiras éticas e se alia com o que há de pior, em todos os
sentidos, da política brasileira. Como explicar isso ao cidadão comum ?
Como defender a atividade política, quando lideranças importantes
prostituem suas biografias e aderem ao vale-tudo ?
Não
vou cair na armadilha da arquibancada. Estou acompanhando com seriedade
as sessões do STF, estranhando “dosimetrias” e outros jargões, mas me
considero incapaz de avaliar o trabalho dos juízes. Minhas conclusões
são, portanto, políticas, desenhadas a partir dos dados de conhecimento
público. Há indícios muito fortes de que se montou uma operação
financeira, alimentada em parte por recursos
públicos, com o objetivo de corromper políticos da base aliada do
primeiro governo Lula, garantindo, dessa forma, a “governabilidade” e o
continuísmo. O jurista Fábio Konder Comparato, um intelectual de
esquerda, escreveu: “Esse partido (o PT) surgiu, e permaneceu durante
alguns poucos anos, como uma agremiação política de defesa dos
trabalhadores contra o empresariado. Depois, em grande parte por
iniciativa e sob a direção de José Dirceu, foi aos poucos procurando
amancebar-se com os homens de negócio”. Tarso Genro, quadro petista
histórico, disse, em entrevista ao Estadão: “Que tem pessoas que
cometeram ilegalidades, não tenho dúvida. Seria debochar da Justiça do
país e do processo dos inquéritos achar que todo mundo é inocente”. Lula
teve, desde o início, um comportamento de biruta de aeroporto.
Atordoado pelas denúncias iniciais, fez dois comentários sintomáticos
... e conflitantes. Em entrevista dada em Paris, sem qualquer base
factual, afirmou que tudo não passava de rearranjo de caixa dois de
campanha, coisa que, no Brasil, “todo mundo faz”. Caixa dois que o então
ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, dizia ser “coisa de
bandido”. Em seguida, numa reunião ministerial, desabafou: “Eu me sinto
traído por práticas inaceitáveis sobre as quais eu não tinha qualquer
conhecimento. Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir
desculpas. O governo, onde errou, precisa pedir desculpas”. Jamais
revelou quem traiu. Hoje, há uma blitzkrieg governista, recusando todas
as denúncias e colocando-se como vítima de uma “farsa”, montada por
“golpistas” e “conspiradores”. Da confirmação à negação total: uma ponte
esquizofrênica.
Os
estilhaços não param de se espalhar. Os que pretendem ser “prisioneiros
políticos” se forem para a cadeia por corrupção ativa e formação de
quadrilha são, não apenas um refluxo patético de seu passado militante,
mas uma ofensa grave aos verdadeiros presos políticos de todos os
quadrantes e épocas. Uma comparação inaceitável e demagógica. Na
entrevista ao jornal argentino La Nación, Lula não conteve a soberba:
“Já fui julgado pelas urnas. A eleição de Dilma foi um julgamento
extraordinário”. Ato falho ? Ao que se saiba, o companheiro
ex-metalúrgico não está no banco dos réus. Ao menos por enquanto. É
melancólico.
Um
esclarecimento indispensável. O PT não é uma associação criminosa, como
verbera a mídia de direita. Não é, claro, o inimigo principal na luta
por um Brasil socialista. Tem quadros e militantes dedicados, honestos e
sinceramente empenhados em lutas progressistas. Ocorre que renunciou,
faz tempo, à esquerda. O projeto do partido no poder tem sido
administrar os interesses do capital, conciliar com as forças
conservadoras e amortecer os conflitos sociais, cooptando organizações
populares. Desde a Carta aos Brasileiros, de 2002, o PT adernou para o
centro e, em muitas situações, à direita. Nas campanhas eleitorais, que
praticamente não se diferenciam dos demais partidos, trata de não fazer
marola e retira a política da agenda. Hoje, é legítimo perguntar: qual é
o projeto político do PT ? Não levo a sério essa história de
“conspiração” e ameaça às elites. Luta de classes é um conceito
manipulado pelo PT ao sabor das conveniências. Quando se trata do
mensalão, são a “mídia golpista” e as “elites” que querem destruir um
partido de origem popular. Quando se trata de atender às demandas da
burguesia, estende-se o tapete vermelho e toma de isenção fiscal,
aumento de crédito e outros mimos. Replica o modelo consumista dos
países capitalistas centrais, sem uma crítica consistente às limitações
desse modelo.
Como
nas novelas policiais, fica a pergunta: alguém irá preso ? No Brasil,
não há a mínima condição de se responder. Tudo tem um bouquet meio shakespeareano. No magnífico Julio César, há o discurso de Marco Antônio, amigo do candidato a ditador que é
assassinado. Os conspiradores convencem o povo, num primeiro momento,
de que o crime tinha sido necessário para abortar a ameaça de um regime
tirânico. Chega Marco Antônio e, com extrema habilidade, muda o estado
de espírito da massa. Ficou célebre sua ironia sobre Brutus, um dos
assassinos: “Venho aqui no funeral de César. Ele era meu amigo, fiel e
justo comigo. Mas Brutus disse que ele era ambicioso, e Brutus é um
homem honrado”. Todos os delinquentes se acham homens honrados. Há outra
passagem no texto, menos citada. César tinha medo da inteligência.
Referindo-se a um senador, diz: “Ele pensa demais. Homens assim são
perigosos”. Profetas e Padins Ciços concordariam com César. E eles
abundam no Brasil.
Abraço
Jacques
A cara feia do fascismo:
Dois graves incidentes marcaram a eleição de ontem em São Paulo. No
primeiro, o ministro do STF Ricardo Lewandowski foi ofendido enquanto
aguardava para votar. “Bandido, corrupto, ladrão, traidor”, gritaram-lhe
alguns eleitores. No segundo, o coordenador da Comissão de Ética do PT
paulista, Danilo Camargo, que é advogado (!), agrediu a socos o
humorista Oscar Filho, do programa “CQC”, da TV Bandeirantes. Alegou ter
sido “provocado”. Expando aos dois casos a nota do presidente da
OAB-RJ, Wadih Damous, que se referiu apenas ao ministro Lewandowski:
“Trata-se da conduta de vândalos, com conotações fascistas”. Caso de
gente que só sabe conviver com o sim, senhor.
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