Emiliano José
Caríssimo companheiro e amigo Paulo Vannuchi,
Nesses dias tempestuosos gostaria de tê-lo abraçado pessoalmente,
transmitir-lhe meu apreço, minha amizade e minha mais absoluta
solidariedade. Não foi possível, no entanto. Estou lhe escrevendo
agora, no momento em que a poeira baixou, sei que momentaneamente.
Todo esse barulho em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos tem
objetivos definidos, não carrega qualquer inocência, faz parte da dura
luta política que enfrentamos no Brasil.
Nós, da esquerda, às vezes acreditamos que o caminho está livre. Que
somos atores solitários, que a história conspira a nosso favor. Não
conspira. A história é feita por homens e mulheres, sob circunstâncias
concretas. Sei que você sabe disso, mas o óbvio ajuda. Aqui estamos
nós no Brasil enfrentando a discussão de um plano elaborado
democraticamente, numa vasta conferência nacional. E a direita toda se
assanha, e ministros se assanham, e parece que o mundo vem abaixo se
for implantada a Comissão da Verdade.
E eu trato apenas disso, nessa carta. Não dos outros pontos ditos polêmicos.
Os que fizeram a ditadura e seus defensores acreditam ser possível
jogar para debaixo do tapete os crimes do período. Às vezes, pode até
parecer, para os que conhecem pouco de nossa história, que havia uma
luta entre um regime legal e seus opositores. Uma luta de iguais. A
mídia trabalhou de tal modo esse episódio que pode existir quem tenha
duvidado da existência de uma ditadura sanguinária no Brasil. Você,
eu, milhares de companheiros estamos todos loucos ao falar das
torturas. Parece isso.
Não houve uma ditadura que prendeu, torturou, matou. Não houve uma
ditadura que empalou pessoas, que assassinou homens e mulheres
covardemente, que levou tantos ao suicídio, que cortou cabeças, que
torturou crianças, que fez desaparecer mais de uma centena de seres
humanos. É, o barulho midiático, alicerçado em fontes da direita,
pretende que exageramos em nossas denúncias.
E nós, como diria Gramsci, não precisamos mais do que a verdade. Só
precisamos dela. Por isso, Comissão da Verdade. Centenas de
companheiros assassinados covardemente, brutalmente, de modo torpe, e
somos obrigados a ouvir uma cantilena que naturaliza, que absolve a
ditadura e quer porque quer perdoar os seus torturadores e assassinos.
Nenhuma anistia pode, de modo nenhum, perdoar torturadores e
assassinos. Aqueles que foram presos pelo Estado têm que ser
protegidos por ele. Sequer a legislação da ditadura admitia a tortura.
Tanto que seus ministros – poderíamos nos lembrar de Alfredo Buzaid,
da Justiça, insistindo na inexistência da tortura – negavam de pés
juntos que houvesse tortura no Brasil. Isso configuraria crime até
mesmo pela legislação daquele regime de terror. Se pretender levar
torturadores e assassinos a julgamento significa rever a lei da
Anistia, então estamos propondo a revisão dela. Mas não é disso que se
trata propriamente.
Trata-se, para os objetivos da Comissão da Verdade, de apurar todas as
violações dos direitos humanos ocorridas durante a ditadura, entre
1964 e 1985. E apuradas, os torturadores e assassinos seriam julgados,
com todo direito a defesa, como é do rito democrático, pelo poder
judiciário, podendo ou não ser condenados. É isso que você tem
defendido, corretamente. Caberia dizer que nós, os que combatemos a
ditadura, fomos sempre julgados, quando sobrevivemos, por juízes
militares, e os julgamentos evidentemente nunca foram imparciais.
Dizem que assim estamos atacando as Forças Armadas. Sabidamente, não é
esse o objetivo da Comissão da Verdade. O que não se pode, no entanto,
é desconhecer que as Forças Armadas, por seus oficiais, mandaram
torturar, matar, seqüestrar, desaparecer pessoas, e sempre,
insista-se, de forma covarde. Afinal, regra geral, matavam pessoas
indefesas, já presas, já submetidas. Isso não poderá ser apagado da
história. Essa mancha de sangue elas carregam. Melhor que se esclareça
tudo do período para que, então, as nossas Forças Armadas possam
cumprir suas atribuições constitucionais sob o Estado democrático.
Tenho insistido que não adianta alisar a ferida. É como se os mortos
nos cobrassem. Como se os desaparecidos nos lembrassem. Não dá para
apagar tantos crimes de nossa memória. Enquanto isso tudo não for
esclarecido, sempre o assunto voltará, queira a nossa direita ou não.
Por que os tantos países latino-americanos que enfrentaram ditaduras
puderam fazer um processo tão claro, julgar e prender seus assassinos,
seus Pinochet, e nós temos que passar por cima de tudo, como se nada
tivesse acontecido? Essa exigência vem do fundo da consciência
humanitária do País, vem daqueles que não aceitam a tortura, sob
nenhum argumento, e que a consideram crime imprescritível, assim como
o assassinato dentro das prisões e o desaparecimento de pessoas.
Sei, ministro, que chegou a ser utilizado o argumento de que, assim
sendo, instalada a Comissão da Verdade, também deveriam ser julgados
os que combateram a ditadura. Devagar com o andor que o santo é de
barro. Ou, como sempre gosto, recorro a Paulinho da Viola: tá legal,
eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim.
Primeiro, caro ministro, amigo e companheiro, cabe dizer a esses
ensandecidos, que nós, ao combater a ditadura, o fazíamos como
legítimo direito, o direito de combater um regime espúrio, ilegal, que
se instalou por um golpe, que derrubou pela violência um governo
democrático. É do direito dos cidadãos de todo o mundo opor-se a
golpes militares. Nós não vivíamos, como óbvio, sob um Estado
democrático, mas sob uma ditadura.
Segundo, nós já fomos julgados. Você, eu, tantas centenas de outros,
que passamos anos nas prisões da ditadura, sabemos disso. Que diabos
ainda querem? Enfrentamos tortura, julgamentos espúrios, e depois
seríamos julgados de novo? Isso corresponderia, tenho dito com
freqüência, a colocar no banco dos réus do Tribunal de Nuremberg
aqueles que conseguiram sair vivos dos campos de concentração
nazistas.
O que me alegra em tudo isso é ver como a história anda.
Quando imaginaríamos, quando presos, ter um ministro como você? Com
essa firmeza e serenidade? Com essa integridade de princípios? Com
essa solidariedade aos que ficaram pelo caminho, trucidados pela
ditadura?
Claro, poderíamos ir além, e dizer que não pensávamos também ter um
presidente vindo das classes trabalhadoras, um operário com esse
discernimento político, com esse compromisso com o povo brasileiro.
Mas eu quero me deter em você, na sua coerência.
Você ouve o lamento das famílias dos desaparecidos, dos que foram
assassinados, dos que foram massacrados. Você, alçado à condição
ministerial, consegue manter-se sensível, atento aos companheiros de
caminhada, para além da posição política. Eu confesso sentir orgulho
de o governo Lula contar com um ministro dessa estatura, com esse grau
de compromisso com a humanidade, porque é disso que se trata.
Sem qualquer arrogância, digo com tranqüilidade que nós não
descansaremos. Não há hipótese de essa história ser jogada para
debaixo do tapete, não há jeito de alisar a ferida. As monstruosidades
da ditadura, os assassinos e torturadores não podem ser perdoados.
Toda a verdade deve vir à tona. Enquanto não vem, ela permanece como
um espectro sobre a Nação.
À medida que a verdade apareça, que os julgamentos ocorram, então a
sociedade brasileira pode seguir sua trajetória democrática sem o
espectro da ditadura. Enquanto isso não ocorre, o assunto estará
sempre presente. Ele é parte de nossa história. Nós queremos que o sol
da verdade o ilumine. E volto a dizer que me orgulho de vê-lo firme e
sereno nessa luta. Conte sempre comigo.
Grande abraço.
Emiliano José
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